O negro na biblioteca: mediação da informação para construção da identidade negra

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O negro na biblioteca: mediação da informação para construção da identidade negra.

Francilene Cardoso

Francilene Cardoso, a bibliotecária, professora e militante nos presenteia com seus escritos sobre a questão étnica publicados pela editora CRV em 2015. O livro como palavra-potência, explora um terreno de multiplicidades, pois ao efetuarmos a leitura, somos transportados para um plano que desestabiliza o olhar solidificado, reificado pelo tecnocientificismo da Biblioteconomia e Ciência da Informação (BCI), áreas do conhecimento que possuem forte tendência disciplinar, instrumental e cartesiana. A obra de Francilene Cardoso transita pelos campos das Ciências Sociais e Humanidades para travar uma conversação com o território biblioteconômico engendrado aos modos de existência das minorias e questiona o discurso hegemônico que tanto permeia o pensamento contemporâneo.

Os percursos realizados pela autora funcionam como dispositivo crítico para problematizar as bibliotecas como instituições de informação, leitura e memória, operadas por ações culturais. Desenvolve também algumas proposições para práticas que envolvem a palavra falada, para o fortalecimento da memória, do imaginário da cultura dos povos negros e implicações para estabelecimento de políticas de formação de coleções centradas na ação cultural e mediação da informação.

A combinação de abordagens realizada por Francilene, para alguns leitores pode transparecer uma discrepância epistemológica, pois algumas pessoas insistem na ideia que não se deve misturar teorizações de autores que possuem pensamentos antagônicos, deve-se buscar a uniformidade, a tão sonhada objetividade e precisão dos sistemas cientificistas. Fugindo dessa servidão metodológica, vejo no texto da autora, uma ruptura das amarras da academia, pois ela propõe uma abordagem dialética, se apropria de conceitos do materialismo histórico, trata de mediação da informação, bebe na fonte do culturalismo ao enfocar questões como memória, patrimônio e identidade para traçar um olhar sobre a questão étnica em aparelhos culturais como a biblioteca.

Ao ler o texto fiz algumas relações com os estudos sobre recepção, já que autora tem influência da teoria crítica, pensadores como Marcuse e Habermas fazem críticas a razão instrumental e o conceito de ação comunicativa pode amplificar as discussões sobre a oralidade como intervenção informacional-estética nas bibliotecas. Lembrei também do texto de Milanesi que trata da oralidade, que permite discutir pontos com base na noção de biblioteca como territórios criativos e inventivos. Concordo com a autora quando ratifica que a Ciência da Informação “precisa se sensibilizar com questões sociais como a questão ético-racial” e podemos visualizar a relevância de um arcabouço conceitual para discutir os temas-problemas vinculados ao campo da BCI.

O vangardismo de “O negro na biblioteca” abre as portas para um instigante tema que necessita de novos caminhos, formulação de trajetos, de tramas e narrativas para o acesso e democratização do conhecimento, evidenciando deste modo, uma agenda para discussão das formas de experimentação cultural nas bibliotecas. A obra aponta para a construção e fortalecimento da diversidade cultural e demonstra a urgência de um pensamento mais transversal sobre os fundamentos e práticas que envolvem os diversos mecanismos que compõe os modos de pensar, de sentir e de agir.

Assim, fui provocado a formular algumas indagações com base na obra de Francilene Cardoso:

  • Como podemos trabalhar a questão étnica sem cair nas abordagens identitárias que muitas vezes homogenizam as discussões sobre a cultura negra?
  • É possível pensar uma noção de indivíduo a partir de uma “identidade”? A maioria das discussões sobre identidade caem no discurso do idêntico, das sujeições (sujeito individuado), nos enunciados unificados produzidos por posições ideológicas que impedem os vetores de força que atravessam as heterogêneas produções de subjetividade.
  • Outro aspecto interessante é como a literatura pode contribuir para a construção da resistência negra a partir dos livros de histórias/estórias de personagens negros como modos de potencializar a leitura, escrita e diálogo? O texto permite sustentar intervenções pedagógicas, informacionais e estéticas necessárias para trabalhar a formação de professores, bibliotecários, mediadores de leitura, embora é interessante uma postura crítica para não cair nos esquemas das representações identitárias do culturalismo.

A biblioteca pode ser visualizada como rede de articulação da diversidade dos modos de vida de seus frequentadores, já que muitos vivem em situação de risco, vítimas de discriminação, abuso de autoridade, violência policial devido a cor da pele, do seu cabelo, da sua música, da sua orientação religiosa, da roupa e acessórios, enfim devido a sua singularidade. Percebi, a partir das ações culturais em bibliotecas públicas, o quanto é necessária a articulação de atividades de semiotização em qualquer biblioteca. Geralmente essas discussões tomam como base as bibliotecas públicas, escolares e comunitárias. Sabemos que nos últimos anos houve um aumento significativo de negros e negras nas Instituições Federais de Ensino Superior, então, como as bibliotecas universitárias tem se preparado para a exposta temática? As bibliotecas das universidades tem coleções que permitem modular o ensino, o desenvolvimento de estudos, de pesquisas e ações extensionistas sobre a cultura negra? Essas e outras indagações desencadearam um questionamento micropolítico de nossas condutas éticas sobre a diversidade cultural, a memória coletiva e saberes baseados na oralidade da herança africana.

Diante do exposto, é interessante conduzir um olhar atento para a oralidade, para os ritos, os mitos, os signos e as enunciações que demarcam os modos de existência das populações negras e colocar a biblioteca como território marcado pela multiplicidade de práticas sociais.

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